SEM ANISTIA - Toda a trama e a tentativa de golpe existiram e isso é um fato qualquer outra justificativa é ‘’Narrativa’’

Anistiar os que mataram, torturaram e perseguiram em nome de uma ditadura militar, ao invés de apaziguar o país, deixou as portas abertas para os golpistas contemporâneos, que quase nos solaparam a democracia. Não existe na história do Brasil uma tentativa de golpe de Estado tão fartamente registrada como a que transcorreu nos quatro anos do governo Bolsonaro e que teve seu auge no 8 de janeiro, já no início do terceiro mandato do presidente Lula. Só por esse motivo a fala do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, no programa Roda Viva, defendendo uma anistia e a redução das penas para os condenados já seria de imensa gravidade. A justificativa de Mucio é de uma fragilidade inimaginável; não para em pé diante de tudo o que até aqui foi revelado das investigações que avançaram desde então. Do alto de seu desconhecimento jurídico, ou talvez pelas suas convicções políticas, Mucio, que tinha parentes acampados em frente ao QG do Exército, "passou pano", dizendo: "Ali tinha gente de todo o tipo, tinha os inocentes, tinha os baderneiros, tinha os baderneiros profissionais que foram só para quebrar, mas quebrar derrubava o governo? Quebrar? Havia algum movimento? As figuras que organizaram aquilo, que idealizaram, no dia não apareceram." Lógico que tinha articulação golpista no dia da "infâmia". O senhor já se esqueceu da tropa de choque do Distrito Federal fazendo selfie ao lado dos "terroristas"? O senhor não tomou conhecimento da participação dos Kids Pretos abrindo caminho para a invasão dos prédios? Ou ainda o descumprimento de determinação do ministro Alexandre de Moraes, por parte do então comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, impedindo com blindados a entrada da PM para a prisão dos golpistas e o desmonte do acampamento na porta do quartel? O senhor, mais que os outros ministros do governo Lula, acompanhou de perto o desenrolar daquele dia vergonhoso da nossa República. Lembra-se da péssima ideia lançada ao presidente Lula, de assinar um decreto de Garantia da Lei e da Ordem para conter a situação? Que essa ideia foi abortada pela primeira-dama, Janja da Silva, que alertou os perigos de entregar o comando do país aos militares? Se esqueceu, vale recordar a fala de Janja sobre uma GLO: "É tudo o que eles (os golpistas) querem". O pedido de anistia, como bem lembrou o presidente Lula, é na realidade uma confissão de culpa daqueles que articularam, financiaram e usaram seus cargos públicos para a concretização do golpe. Vale lembrar que essa gente até hoje não foi sequer denunciada pela Procuradoria Geral da República. Recomendo ao senhor Ministro da Defesa, se ainda não o fez, que assista o filme, "Ainda Estou Aqui". Essa obra cinematográfica, tão premiada mundo afora, é a prova contundente de que anistiar os que mataram, torturaram e perseguiram em nome de uma ditadura militar, ao invés de apaziguar o país, deixou as portas abertas para o discurso de ódio dos golpistas contemporâneos, que recentemente quase nos solaparam a democracia. Muitos deles eram jovens oficiais nos anos de chumbo e reincidiram nos crimes contra o estado democrático de direito, justamente pela impunidade dos mesmos crimes do passado. Essa falta de acerto de contas com o passado ditatorial nos custou (e custa) muito. Estimulou os frequentes refluxos autoritários daqueles que, mesmo após a redemocratização, insistem em avançar sobre os limites que a constituição lhes impôs. Sei bem do apreço que o presidente Lula tem pelo Ministro Mucio, e a recíproca me parece verdadeira. Sei também das dificuldades de lidar com os melindres e os humores das Forças Armadas. Sei da importância de José Mucio nesse relacionamento tortuoso, na tarefa impostergável de se estabelecer, em definitivo, as forças armadas dentro dos estritos limites constitucionais de suas funções. A crise de identidade constitucional das forças armadas, caro leitor, é um problema de todos nós, já que está sempre por trás de todas as investidas contra a democracia. É de urgente solução e isto passa, necessariamente, pelo correto tratamento de toda e qualquer ação golpista. Por tudo isto, a fala, no mínimo inadequada do Ministro da Defesa de um governo que nos seus primeiros dias teve que lutar contra uma tentativa de golpe (e o nome é este), merece a devida reprovação. Golpistas não passarão!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor Florestan Fernandes Júnior, jornalista, escritor e Diretor de Redação, e não reflete a opinião do PORTAL.